Os filmes trash sempre foram usados como um de “quebrador de gelo” entre os espectadores de um terror mais clássico, quando desejam assistir a um filme com os elementos do seu gênero favorito, mas sem todo o peso que a atmosfera que só um terror, com suas luzes a 45 graus e som impactante, trás. Sempre defendi que o terror é mais do que sustos e causar medo, o terror pra mim é também tratar de um tema central de reflexão, como todos os outros gêneros cinematográficos podem fazer, através de uma ótica absurda, muitas vezes extrema e fantasiosa, da realidade.
São muitos os exemplos de filmes de terror que trazem uma reflexão, mas que tem seu teor crítico completamente anulado pela sua chocante explicitude dos elementos do gênero, O Exorcista é o exemplo mais famoso, o leitor pode fazer um exercício agora mesmo, tentando lembrar da última vez em que se discutiu a questão da fé através do filme, em vez de apenas chamar atenção para a maquiagem assustadora que traz a Linda Blair possuída pelo demônio Pazuzu. Ao longo dos anos criou-se um estigma de que alguns filmes são sérios e outros não, o terror entra na categoria dos filmes “não sérios” e isso levanta outra discussão, que é o ponto para o qual quero chamar atenção nesse texto: se o dito “terror sério” não é assim considerado por grande parte do público médio, o que será do teor crítico dos “terrir” e, consequentemente, dos filmes trash? Primeiramente vamos falar sobre o que é um filme trash. O filme trash é descrito como um filme tecnicamente mal feito, de maneira proposital, seja por meio de uma atuação ruim, de uma pós-produção propositalmente “preguiçosa” ou de uma produção excessivamente artesanal descuidada que impõe um caráter cômico ao filme. Um dos maiores exemplos de filme trash que podemos citar é o famoso Fome Animal, dirigido por ninguém menos do que Peter Jackson. Inúmeros exemplos podem ser citados, de filmes ilustres do subgênero, como Terrorvision, Re-Animator, Chopping Mall e tantos outros que teríamos de fazer um post de listas, tal como “20 filmes trash para conhecer o subgênero”, mas como não é o nosso propósito tomarei como base um deles, o primeiro citado para continuar a nossa reflexão. Terrorvision, ou A visão do terror como é chamado o filme nacionalmente, é um filme trash de 1986 que conta a história de uma família americana, com todas as suas peculiaridades da época, como velhos avôs ex-combatentes e adolescentes rebeldes, que recebe a ilustre visita de um ser extraterrestre que se materializa através do sinal de televisão e passa a assombrar a vida dos que moram naquela casa. A aparência do alienígena é grotesca, e de tão grotesca, cômica. Apesar de todo o mal que o ser causa à família, é quase impossível leva-lo tão a sério quanto levamos alienígenas de filmes melhor produzidos como Sinais. No entanto, ao pensarmos além da direção de arte extravagante (o que não quer dizer ruim, pois cumpre e muito bem o seu propósito) e das atuações caricatas, podemos enxergar uma crítica à alienação pela mídia, nesse caso a televisão, de uma maneira até mesmo inovadora, dificilmente vista no cinema. Logicamente o filme não é o primeiro a colocar em pauta o tema “televisão na vida das pessoas”, no entanto, é interessante pensar na forma em que se aborda: uma família caricata e obcecada pela televisão que recebe a visita de algo que eles não sabem de onde vem, mas sabem que vem através de um inofensivo aparelho e que quer fazer mal a eles. Quantas pessoas não são manipuladas todos os dias por “sinais alienígenas” que eles não sabem exatamente de onde vêm e quem controla, mas que entra nas suas casas de maneira inofensiva através de um aparelho de televisão e, sem perceber, em pouco tempo já influenciou o modo como elas vivem e pensam? Não é preciso ir muito longe para saber o que representa o monstro grotesco de visual engraçado. A visão do terror é só um exemplo no meio de uma filmografia imensa de filmes que à primeira vista não são dignos de um olhar sério (na visão de algumas pessoas). Quer uma crítica ao meio acadêmico através de um filme trash? Dá uma conferida em Re-Animator. Querendo um filme que te faça refletir sobre as relações fechadas de um grupo de pessoas mais abastadas? A sociedade dos amigos do diabo está aí, contando com belíssimas referências do terror mais “refinado”. Dê uma chance aos filmes trash, conheça outros modos de crítica através do cinema.
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Título original: Suspiria Direção: Luca Guadagnino Luca Guadagnino, diretor do memorável Me chame pelo seu nome, que em 2018 sagrou-se vencedor do Oscar na categoria melhor roteiro adaptado, foi da água para o vinho quando saiu do drama para o terror no seu reboot do Suspiria, lançado originalmente há 42 anos. Suspiria (1977) de Dario Argento, diretor responsável por uma popularização maior do cinema Giallo, possuía características memoráveis que faziam parte de forma quase canônica do subgênero: a direção de arte sempre grandiosa, a fotografia contrastada e com um bom uso de cores que beiram o irreal e imprimem um ar de fantástico a esses filmes derivados do chamado “spaghetti nightmare”. Suspiria (2018) de Guadagnino reproduz isso muito bem em nosso século/década em um filme que se não é Giallo, é muito bem referenciado pelo seu original que já é uma escola e tanto. Suspiria (2018) é ambientado em Berlim, num período de furor político, onde um psicoterapeuta em um período de luto intenso recebe denúncias de uma de suas pacientes sobre um sombrio culto de bruxas que dirige uma renomada escola de dança, no meio disso uma nova aluna com um aparente talento excepcional é admitida na escola e aos poucos vivencia a realidade daquele lugar. Um dos maiores pontos positivos do reboot do clássico giallo, na minha opinião, é a maneira como o diretor coloca a dança contemporânea como um elemento magístico, se no original esse elemento não foi tão bem explorado, de maneira visual, o novo propõe a desde o início explicitar a importância da dança dentro daquele, se assim podemos chamar, covil de bruxas, sendo parte fundamental dos ritos e compondo duas das sequências mais marcantes do longa: a primeira demonstração de bruxaria e o rito final de consagração da nova Mãe, os quais nos leva diretamente a um novo comentário. A película é longa, em cerca de 2 horas e meia Guadagnino propôs entrelaçar histórias paralelas com muitos personagens periféricos que, no meu julgamento, torna o filme desnecessariamente cansativo à primeira vista e até confuso para quem não está acostumado com esse tipo de filme e não conhece tão bem o universo dele. No entanto, em pontos chave (dentre eles eu posso citar, além dos dois mencionados no parágrafo anterior, um encontro do psicoterapeuta com sua esposa morta) o diretor laça o espectador que certamente ficará com os olhos grudados e boquiaberto com a direção de um terror puro, sem jumpscares, sem exagerados caprichos de algo que visa ser comercial e arrebatar um público que pende para esse tipo de filme, puro como um terror sensorial, de imaginação. Destaque para a atuação da Tilda Swinton, a qual interpretou um papel triplo, vivendo a professora de dança Madame Blanc, o psicoterapeuta Dr. Josef e a bruxa Helena Markos, transparecendo no primeiro uma frieza que desabrocha em uma paixão indevida e no segundo um amor que nunca será superado, de forma tocante. Dividindo opiniões por onde passa, Suspiria (2018) é mais um dos integrantes do que gosto de chamar de “década das bruxas do séc XXI”, compondo um trio de filmes que abordam o tema bruxaria e magia negra com A Bruxa (2015) e Hereditário (2018). Bom, ainda temos mais um ano inteiro pela frente para saber se teremos mais bruxaria por esta década. Título original: La Nuit a dévoré le monde Direção: Dominique Rocher O horror se reinventa a cada ano que passa, torna-se cada vez mais distante do que se acostumou a ver e isso causa estranheza a um público acostumado ao horror engessado, sem profundidade ou com um ritmo frenético, mais ação do que horror na maioria das vezes. A noite devorou o mundo é um exemplo de filme de horror onde o expectador mais preso à modelos comerciais logo irá tratar de imbuir outros gêneros até conseguir arrancar a última gota de horror do filme. A noite devorou o mundo, dirigido por Dominique Rocher, é um filme adaptado da obra homônima de Martin Page, onde o jovem Sam, após acordar em um apartamento no qual ocorria uma festa na noite anterior, percebe que está praticamente sozinho em uma Paris tomada por zumbis, que não se sabe como surgiram. O ritmo do filme O filme se destaca por ter um ritmo diferente dos filmes Zombie Horror que se vê comumente. A noite devorou o mundo possui um ritmo lento, bastante contemplativo, com poucos movimentos de câmera, o que talvez não agrade quem não está acostumado a filmes com essa proposta, mas que se bem aceito torna mais fácil de compreender as reflexões trazidas pelo roteiro, em especial nos poucos e pontuais diálogos do filme, quase sempre expressos pelo protagonista Sam. “Estar morto é o novo normal” É comum os filmes que trazem zumbis, carregarem consigo uma boa dose de crítica à sociedade de consumo e A noite devorou o mundo não é diferente ao criticar a sociedade em si. A frase destacada no título que rege este parágrafo, dita por Sam em certo momento da película, é um bom exemplo do quão pontual em relação aos diálogos o filme é. O que é ser normal, ou anormal? O filme coloca isso em xeque quando nos apresenta uma forma diferente de refletir sobre a normalidade e sobre como os “anormais” são tratados pela “massa normal”, que persegue incessantemente aquele que tem vestígios de anormalidade, obrigando quem não se encaixa em seus padrões a viver enclausurado, solitário, acreditando de tal forma ser o único a viver em sua aberração, que não enxerga que pode haver mais pessoas como ele. O que os amantes do subgênero podem esperar? Quem é apaixonado pelo subgênero do horror que contempla os mortos vivos pode esperar um filme que aproxima o zombie movie de um público que não é tão receptivo a esse tipo de produção, por ser na maioria das vezes repletos de sustos e cenas feitas para mostrar maquiagem. Apesar disso, sem perder a essência e adicionando um “fator dúvida” que, na minha opinião, eleva um filme de horror a um patamar de excelência. Título original: Hereditary Direção: Ari Aster O terror no séc XXI Os fãs de terror vivem de buscar no séc XXI algo tão bom quanto O Exorcista foi para o seu século. Até então, A Bruxa ocupava o cargo de melhor terror do novo milênio e, mesmo com bons filmes como Corra! e o remake de Suspiria, dirigido pelo talentoso Luca Guadagnino (Me chame pelo seu nome), parecia imbatível pelo menos a curto prazo, parecia. O filme Ari Aster teve sua estreia na direção de um filme longa metragem de forma brilhante, Hereditário conta a história da conturbada convivência da família Graham, que acabara de perder a sua misteriosa avó, perda sentida principalmente pela jovem Charlie (Milly Shapiro), por quem a matriarca tinha um apreço singular, sua mãe, Annie (Toni Collette), tenta manter uma boa relação com o filho Peter (Alex Wolff) enquanto percebe que as coisas ficam cada vez mais estranhas com o passar do tempo após a morte da sua mãe. Um novo “Exorcista”? É comum existir a expectativa do nascimento de um novo “Exorcista” sempre que é anunciada a estréia de um filme de terror e por muito tempo se apostou no caminho do clássico de William Friedkin para alcançar o hall da fama infernal do gênero, até que, com algumas referências ao maior clássico do horror e uma boa dose de O bebê de Rosemary, Hereditário chega lá com um roteiro e direção sofisticada que constrói a narrativa no tempo certo e insere gradualmente sua atmosfera diabólica até atingir seu ápice, uma verdadeira aula de como o terror sobrevive (e muito bem, obrigado) sem os chatos jumpscares presentes à exaustão no terror em sua forma mais comercial. A fotografia de Pawel Pogorzelski se destaca pela perfeita inserção de elementos narrativos, quando combina a cor luz contrastada com a paleta escura e morta, apontando muitas vezes de onde o perigo vem ou que sentimentos os personagens assumirão a partir de determinado ponto. Destaque para o vermelho em todas as suas intensidades, um verdadeiro show de desenho de luz. A atuação do jovem Alex Wolff, que encarnou Peter Graham na película, é uma bela surpresa, quando lhes são exigidos movimentos sutis e bruscos, os faz de uma maneira transitoriamente perfeita, mantendo as características do personagem bem definidas até o fim. Existe um ponto negativo? O final poderia a meu ver ser menos explicativo, com um diálogo mais simples que não escancarasse o que já ficou subentendido no decorrer da película, que deixasse essa parte para o raciocínio do público. No entanto, nada que estrague a experiência de assistir ao que, para mim, é o maior terror do séc XXI e um dos maiores de todos os tempos. Título original: Truth or Dare Direção: Jeff Wadlow O novo terror sob produção de Jason Blum, conhecido pelas películas Corra!, Atividade Paranormal, A Entidade, entre outros que fazem o terror do séc XXI viver em constante expectativa de crescimento, não segue a mesma linha dos citados anteriormente. Com uma história referenciada em filmes consagrados pelo público do “terror teen”, Verdade ou Desafio mais parece uma experimentação de estudo do que um filme de fato. A história envolve um grupo de jovens que viaja ao México para um período de diversão, como manda a lei dos “terror teen”, no meio de uma festa, são convidados por um estranho para jogar “verdade ou desafio” em uma construção em ruínas, logo eles percebem que ao entrar no jogo, atraíram um demônio poderoso. Já de início nos é apresentada o que parece ser uma referência a O massacre da serra elétrica, com uma cena que se inicia em um posto de gasolina no meio do deserto. O que causa brilho nos olhos de qualquer fã do terror clássico em primeiro momento, é logo suprimido por uma introdução rápida que reflete o vazio que o filme em sua íntegra carrega. Elementos que parecem ser de duas produções de forte público são evidenciadas na transição do primeiro para o segundo ato: a maldição que passa de uma pessoa para outra, talvez referência ao bom filme It Follows, e a rotatividade do efeito da maldição sobre um grupo de pessoas, calculado inicialmente por uma fotografia, lembrando Premonição. Mas apesar das referências, o filme utiliza mal a brincadeira homônima à película, quando além de imprimir romances e brigas causadas por motivos menores à uma perseguição demoníaca já consciente pelo grupo, também esquece das próprias regras do jogo, forçando os personagens a por vezes executarem desafios quando inicialmente pediram por “verdade”, um roteiro sem sentido e previsível. Os efeitos também não agradam, apesar da boa idéia em diferenciar por meio da expressão facial os gestos que o demônio Calux impõe sobre os afetados pela maldição, a estética não surte o mínimo efeito de causar apreensão, chegando até a parecer cômico em alguns momentos. Além, detalhes como lanternas de celular com um alcance militar empregam certo amadorismo da parte dos efeitos visuais. Por fim, após clássicos instantâneos do terror recente, como A Bruxa, Corra! ou IT: a coisa nos darem todo o indício de que o terror possa voltar aos poucos ao que foi nos anos 1970 e 1980, algumas produções como Verdade ou Desafio nos mostra que a aposta a um apelo mais comercial ainda trava a ascensão do gênero em questão. Título original: Dude Direção: Olivia Milch Os novos filmes que compõem o que eu gosto de chamar de dramatic teen movies estão começando a aparecer para o cinema. Com a indicação de Lady Bird, passei a dar maior atenção a esse “subgênero” moderno. Seguindo, Dude - A vida é assim, é mais um bom exemplo de como esse cinema possui potencial. O filme de estréia da Olivia Milch na direção trata de quatro melhores amigas em seu último ano de ensino médio, lidando com os problemas da vida adolescente sempre regadas a álcool, drogas e festas. Em meio a clichês já esperados em “filmes teen”, Dude - A vida é assim, expõe um ponto da vida adolescente, o qual todos já passamos mas acabamos por esquecer ao atingir a vida adulta: o medo frente à mudança do estilo de vida com o fim do ensino médio. Nem tudo é como a gente quer, mas a vida é assim. Não podemos ver as pessoas que gostamos todos os dias, mas a vida é assim. Temos que aprender a conviver com algumas partidas que não estamos preparados, mas a vida é assim. É normal sentir-se frustrado em relação às coisas da vida, inseguros quanto o que será de nós no futuro, principalmente na fase adolescente, e o filme busca transmitir toda essa instabilidade emocional através de uma boa escolha de planos que são filmados com câmera na mão, ou com leves movimentos que distorcem ou comprimem nossa visão ao longo do tempo, nada brusco, apenas gradual. Se na escolha de planos o filme cumpre sua função, em boa parte do roteiro também o faz. É bem verdade que os clichês existem, o adolescente que usa drogas, que é sexualmente desinibido e que está o tempo inteiro falando sobre namoros de colégio estão presentes, no entanto, o que é deixado nas entrelinhas, escondido pelos clichês, é a imagem de um adolescente frágil, em fase de desenvolvimento emocional, onde ele molda sua personalidade para lapidar-se nos anos que se seguem. O desenvolvimento dos personagens, dos diálogos e das situações ocorrem bem no primeiro e segundo ato, porém, no terceiro ato, que comporta o final do filme, toda a carga dramática que acumulou até aqui parece ter sido jogada fora para dar lugar a um final digno de uma série dos anos 2000, bem menos do que o cinema atual, com um público cada vez mais especializado, exige. Apesar disso, é um fato que podemos esperar mais filmes com temática adolescente com uma boa carga dramática, Lady Bird nos ensinou que isso é possível e Olivia Milch com o seu novo filme nos põe cientes do desenvolvimento desse tipo de película. É importante para o público juvenil, que se sentirá representado não apenas por comédias adolescentes sobre garotas malvadas e meninos tarados, mas por algo que reconheça e expresse as suas emoções mais ocultas. Título original: Je ne suis pas un homme facile Direção: Eleonore Pourriat Je ne suis pas un homme facile, dirigido pela Eleonore Pourriat, parece ser fruto do amadurecimento de uma ideia já explicitada alguns anos antes pela diretora e roteirista em seu curta Majorité Opprimée (Maioria Oprimida), onde apresenta um dia na vida de um homem que sofre opressão sexista em um mundo matriarcal. Eu não sou um homem fácil apresenta a visão invertida da nossa sociedade patriarcal, ao bater a cabeça em uma placa na calçada, um homem machista se vê em uma realidade alternativa, onde as posições de maior importância na sociedade são ocupadas por mulheres, formando um sistema matriarcal onde os homens são oprimidos e o sexo feminino é tido como o sexo forte. O filme trabalha um tema delicado do nosso tempo, a opressão sentida pelas mulheres é talvez a mais historicamente difícil de se extinguir. O surgimento do feminismo no século passado trouxe à tona um debate sobre igualdade que permeia até os dias de hoje, com avanços, é verdade, mas que ainda não são o suficiente. O primeiro elemento a se destacar no filme é o uso do termo “masculista” para se referir aos homens que, naquela realidade, lutam pela igualdade. Masculista não é o mesmo que machista e a Eleonore deixa isso como um recado ao que insistem em dizer que o movimento feminista anseia pela superioridade das mulheres, ao alternar entre uma sociedade patriarcal e matriarcal, a diretora força a percepção de que a superioridade de um sexo sobre outro, qualquer que seja, causa sofrimento por si só. No entanto, apesar da clara e importante mensagem, o filme deixa a desejar em relação ao seu roteiro, tudo acontece rápido demais ou muito lentamente, sem um equilíbrio narrativo. Os clichês, que são sim necessários até para o tom didático que o filme possui, aparecem de maneira repetitiva, o que torna a narrativa monótona e caricata até o ponto de gerar desinteresse pela sua continuidade. Dois outros destaques que faço são sobre duas sequências que me chamaram a atenção, uma em que é apresentado ao personagem Damien (Vincent Elbaz) uma “boate gay” na realidade matriarcal, a cinematografia que até então havia seguido uma linha comum, passa a mostrar planos assimétricos e uma iluminação que imprime um quê de fantasia e um caráter alternativo e estranho ao ambiente em que os personagens se inserem, ao chegar à pista de dança e Damien constatar que trata-se de um ambiente onde os homens e mulheres vestem roupas iguais as que vestimos na nossa atual realidade, o efeito provocado pela marginalização do que é normal pra nós é maravilhosamente impagável. Outra sequência de destaque seria mais uma das que mostra a inversão de papéis nesse “outro mundo”, porém dessa vez através de uma referência à antológica cena do filme O Desprezo, de Jean-Luc Godard, onde Eleonore inverte a posição do homem e da mulher no famoso plano da cama e expressa suas referências na Nouvelle Vague. O Desprezo (1963) Jean-Luc Godard Eu não sou um homem fácil (2018) Eleonore Pourriat Por fim, apesar do filme de Eleonore Pourriat a meu ver falhar em alguns aspectos, é inegável a importância da discussão que ele traz sobre o valor da igualdade entre homens e mulheres, tanto para a França, que é um país historicamente à frente em questão de movimentos sociais, quanto principalmente, para o resto de nós.
Titulo original: Annihilation Direção: Alex Garland O filme de Alex Garland, novo diretor de ficção científica tendo estreado na direção com o filme Ex_Machina, é um presente visual e reflexivo ao espectador. Dispondo de mais do que o dobro de orçamento que teve em Ex_Machina, Garland insere em seu filme uma reflexão sobre o caráter das transformações por meio de uma direção de arte que é o ponto alto da película. A produção gira em torno de um fenômeno, o brilho, que apossou-se de uma área costeira e expandiu-se. Todos que adentraram nessa área jamais voltaram, exceto Kane (Oscar Isaac), um militar, casado com Lena (Natalie Portman), bióloga, que ao perceber que existe algo de errado com o seu marido e levá-lo ao hospital, é capturada por uma força tarefa e transportada a um campo de observação, de onde sairá acompanhada de mais quatro especialistas para examinar a causa do brilho. O filme é um espetáculo visual, desde a direção de arte, ponto de destaque da produção, que constrói cenários magníficos com referência à clássicos da ficção científica, à fotografia, que utiliza de lens flare (fenômeno óptico causado pela dispersão da luz na objetiva da câmera) para firmar o fator refrativo da área coberta pelo brilho e, além de cumprir essa função, por vezes indica influência do brilho nos personagens, atravessando a cabeça para indicar a insanidade provocada pelas mutações, por exemplo, muito bem pensado. As transformações são o maior ponto reflexivo do filme, já que o brilho por si só não destrói, nem constrói, apenas torna tudo diferente. Os personagens que adentram na área do brilho possuem problemas afetivos, existenciais, adentrar no brilho e sofrer mudanças é forçar-se a se adaptar, é perceber que adaptações por vezes são dolorosas, como a morte da Sheppard (Tuva Novotny), mas também podem ser tranquilas, como a transformação da Radek (Tessa Thompson) e até enlouquecedoras, como a Anya (Gina Rodriguez), mas são sempre necessárias para um bom futuro, ainda que traga resquícios que forcem a uma nova adaptação. Aniquilação é mais um exemplo do crescimento do fator reflexivo mais profundo nos filmes de gênero e da reinvenção da própria ficção científica. Recentemente já tivemos Ex_Machina, A Chegada, Blade Runner 2049 e, agora com Aniquilação, acredito que podemos esperar mais da ficção científica no séc XXI, que ela seja muito bem vinda. Título original: A quiet place Direção: John Krasinski No ano passado tivemos um filme inovador quanto ao seu som, Dunkirk, cuja mixagem rendeu um oscar. Um lugar silencioso tem tudo para ser comparável à Dunkirk no quesito inovação, quando imerge o espectador em um universo de silêncio onde até mesmo o som de um tecido arrastando-se no chão pode ser um elemento assustador. Um lugar silencioso é uma película que expõe a sobrevivência dramática de uma família em um local tomado por criaturas, que não se sabe de onde vêm, cegas porém sensíveis a qualquer som emitido ainda que à distância. O fato de não saber o lugar de origem das criaturas é um incentivo à imaginação de quem assiste, o que contribui para a identificação maior com a história, alguns podem imaginar que sejam extraterrestres, outros que sejam frutos de experiências de cientistas malucos da área 51, tudo de acordo com as suas referências e gostos pessoais, na minha opinião é um dos pontos mais fortes do filme. O que se ouve: O ponto que rege o filme, o silêncio, é muito bem trabalhado em parceria com a mixagem nos momentos em que o som se faz presente. O primeiro ato, que apresenta os personagens e ambienta quem assiste naquele universo, é de um silêncio sepulcral que firma de imediato a preocupação em emitir o mínimo de som possível, a introdução é de suma importância para a impressão de tensão que o silêncio provoca, pois cada barulho passa a ser mais intenso, desde brinquedos barulhentos à pilha, ao atrito de grãos de milho. Destaque especial também para a trilha de Marco Beltrami, compositor dos filmes Pânico, e sua semelhança com as batidas do coração, que cria todo um sentimento de ansiedade. O que se vê: A direção de arte imprime muito bem o caráter apocalíptico que o filme possui, seu ponto de destaque são as diversas folhas de jornal com manchetes sobre as criaturas causadoras de todo o mal, que dão informações preciosas para a produção de sentido sem comprometer a parte imaginativa do espectador e sem que os personagens tenham que explicar. A fotografia é escura, mesmo de dia o rosto dos personagens é tomado por uma sombra que parece os acompanhar, como as criaturas que estão sempre à espreita. destaque para o uso das luzes externas por parte da família para enviar recados à distância, a luz vermelha utilizada para sinalizar o perigo máximo tem uso além do que foi destinado pelo roteiro, imprime a continuidade do perigo mesmo após a cena que caracteriza seu uso principal. As criaturas aparentemente guardam referências dos lickers do Resident Evil com uma pitada de Cloverfield Monstro e sua estrutura auditiva quando mostrada é um exemplo do bom uso do CGI no terror e ficção científica. Observações finais: Destaco por último o uso da língua de sinais em boa parte do filme e a importância da personagem surda para o contexto, um lembrete da existência de um grupo marginalizado da população. Um lugar silencioso é um exemplo de como o terror pode inovar, de como pode evoluir para algo que fuja da mesmice que está na cabeça dos preconceituosos com o cinema de gênero. Título original: Wonder Wheel Direção: Woody Allen O novo filme do Woody Allen, este mais integrado do que o último (Café Society) no cinema digital, realça a habilidade do diretor em criar conflitos amorosos e destaca ainda mais a genialidade do Vittorio Storaro na iluminação. Roda Gigante é ambientado na Coney Island nos anos 50, conta com a atuação destaque e brilhante de Kate Winslet que vive uma ex atriz que teve seus sonhos despedaçados e, estando inserida em um casamento frio, conhece e apaixona-se por um jovem salva-vidas, o qual corresponde o seu amor e o divide com a atraente Carolina (Juno Temple), sua enteada recém chegada, formando um triângulo amoroso secreto. Apesar de um CGI que às vezes chega a incomodar, o maior destaque de Roda Gigante é o seu desenho de luz. O mago da luz, como é conhecido o diretor de fotografia Vittorio Storaro, utiliza magistralmente as luzes do parque de diversões de Coney Island a favor da narrativa. O filme tem um tom predominantemente dourado, que além de remeter à era de ouro do cinema norte americano, realça o sentimento de vivacidade despertado em Ginny (Kate Winslet) ao conhecer o salva-vidas Mickey (Justin Timberlake), fazendo por vezes um jogo onde os momentos em que eles estão juntos são marcados pelo dourado e os momentos em que ela está junta ao marido Humpty (James Belushi) são de uma insaturação sepulcral. A iluminação do parque de diversões alterna várias vezes entre vermelho e azul. O vermelho, ao preencher o quarto no qual Ginny e Carolina discutem sobre Mickey cria um clima de ciúme ardente sobre Ginny, ao passo que o azul imprime em Carolina a inocência de desconhecer que está em um triângulo amoroso. O azul também mostra a frieza da relação que Ginny mantém com seu marido Humpty, que acomodou-se em seu posto de operador de carrossel e pescador e que força Ginny a acomodar-se também. Em meio às escapadas de Ginny com Mickey, o vermelho na tela demonstra a sexualidade que aflora de Ginny ao conhecer um novo amor e viver uma paixão proibida. Além da iluminação, é curioso destacar o primeiro encontro nas telas entre Kate Winslet e Woody Allen, que poderia ter acontecido em Match Point (2005) se a atriz não tivesse desistido do projeto. Apesar da fala de Kate após o término do filme, que acredita-se que tenha sido direcionada especialmente ao Allen, destaca-se a cena do mini monólogo no final da película, onde ela vestida com seu antigo traje de musical encara a triste realidade na qual vive e da qual não sairá, um verdadeiro show de atuação. Lançado no dia do aniversário de 82 anos do Woody Allen, Roda Gigante conquista pela iluminação primorosa, por atuações femininas de grande qualidade e pela inserção cada vez maior do velho diretor no novo cinema digital, no qual, encerro, deve-se ir com mais cautela. |
Amante dos filmes de terror clássicos e de um trash mal feito, é cinefotógrafo e tem o hábito de ver um filme no mínimo duas vezes: uma analisando o geral e outra analisando apenas a fotografia. Além, Igor é membro fundador da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN).
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