Como encarregado de escrever sobre este que é o segundo longa-metragem do David Fincher, vi-me preso a um filme que já assisti diversas vezes e, nesses casos, fica, em mim, uma incômoda sensação de expor exatamente tudo o que me vem à mente, detalhando sequência por sequência. Reassistindo agora, percebi que isso daria, no mínimo, um longo capítulo de livro e, portanto, decidi me ater a alguns poucos pontos gerais, à introdução e aos créditos iniciais. Pois... Inicialmente, parece-me necessário atestar: uma lista que não traga, hoje, quase dezoito anos após a estreia de Se7en (no original), o nome David Fincher entre os dez melhores diretores da atualidade não merece ser levada a sério. Isso, porém, não se deve, somente, ao seu domínio técnico e ao seu ritmo e estética autorais. Desde 1995, Fincher é um dos raros diretores do cinema de Hollywood com coragem para abordar temas polêmicos e com habilidade para transformar um filme de história incômoda em um válido espelho de época. Suplantemos Alien 3 (seu primeiro filme), prejudicado por imposições do estúdio (e que, mesmo assim, não é desprezível), e o mediano O Curioso Caso de Benjamim Button e restam, assim, apenas Zeitgeists. Se Clube da Luta (de 1999) é um aforisma direto à inércia e ao consumismo do final do século passado (que parece caber ainda mais por hoje); se O Quarto do Pânico (de 2002) é uma menção, ainda que cautelosa, à insegurança crescente, à sensação de perigo constante e de prisão na sociedade no século que se iniciava; se A Rede Social (de 2010) é um diagnóstico preciso do que são as relações humanas e, ainda mais, do que elas estão se tornando (alicerçado, ainda, por uma história real); Seven: Os Sete Pecados Capitais (ou Seven – Os Sete Crimes Capitais) é uma absoluta reflexão sobre a desesperança e o pessimismo (e, naturalmente, seus antônimos). É, também, sobre a perda de valores da sociedade e se encaixa, com ironia, ao Ano das Nações Unidas para a Tolerância (1995, exatamente), algo que o roteirista Andrew Kevin Walker, por meio do detetive David Mills (Brad Pitt), ignorou... E ignorou bem! Construído sobre (e sob) o clichê da dupla formada por um policial veterano e por um novato irrequieto que se une para uma perseguição, o filme não tarda para demonstrar que o lugar-comum finda nesse aspecto. Já nas cenas iniciais, Fincher apresenta seus protagonistas com tanta sutileza e consciência que nem mesmo um tabuleiro de xadrez pode passar despercebido. Enquanto o detetive Somerset (Morgan Freeman) é apresentado como alguém regrado, racional (vide o tabuleiro), organizado (seus objetos, meticulosamente dispostos, comprovam) e de poucas expressões faciais (uma construção certeira do Freeman), Mills surge de modo repentino em cena, mascando um chicle e sorrindo (quase que ironicamente) ao se apresentar. Enquanto isso, a mise-en-scène de muitos detalhes verdes (sempre intensificada quando Somerset se põe a pensar) ratifica e antecipa a racionalidade do jogo que ambos estarão participando e, quando estão finalmente juntos, frente-a-frente, o ângulo baixo da câmera os revela com grandeza (apesar das suas diferenças), como heróis. Acredite: isso tudo acontece, somente, na introdução. Antes mesmo dos créditos iniciais. E é nos créditos iniciais que acontecem duas outras sacadas geniais. A primeira (e já bem difundida) é a não inserção do Kevin Spacey (intérprete do John Doe), a pedido do próprio ator, para, com isso, manter oculto o intérprete do serial killer. A outra (bem velada), é uma brincadeira sarcástica com o lema americano “In God, we trust (Em Deus, nós confiamos)”. Uma brincadeira com mais de uma interpretação. Como assim? Explico (ou tento): ao final dos créditos, vemos um jornal, de ponta-cabeça, com parte da dita frase em letras graúdas. Uma tesoura, então, recorta a palavra God (Deus), deixando o vazio em seu lugar. Em quem nós confiamos agora? O criador dessa abertura, Kyle Cooper (o mesmo designer da abertura das séries The Walking Dead e American Horror Story – sendo, a dessa última, referência clara ao filme em questão), transforma um segundo e alguns centésimos (sim, eu marquei por curiosidade) em uma crítica ao conformismo e às analogias de causa e efeito que não se adequam à lógica formal (falando, evidentemente, aos compatriotas do lema). Não posso responder por qualquer pessoa, mas tenho certeza que Mills, até o final dos cento e vinte e sete minutos, com somente uma exceção, aprende a confiar em absolutamente nada e ninguém. A exceção: seus cães. Eu havia dito que o jornal surge de ponta cabeça? Pois... ... Caso queira relembrar, assista a essa criação do Kyler Cooper abaixo: Sem mais me delongar e como estou escrevendo essa curta análise após tanto tempo da première, deixo o título como indicação para quem ainda não assistiu. Para quem já assistiu, deixo uma sugestão: reassista! E perceba mais e mais detalhes que fazem do David Fincher um dos dez melhores cineastas da terra do Tio Sam. “Em dois meses, tudo será esquecido.” Não, Mills. Você estava errado. Seven está quase alcançando a maioridade e ainda permanece como um dos melhores thrillers da história do cinema. Um trailer do filme: No mais: "Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua por meio de filosofias e vãs sutilezas segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo e, não, segundo Cristo; Porque, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da divindade; E estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo o principado e potestade;" Colossenses 2: 8-10 A cabeça. Pois... Bons e ruins filmes para nós! obs: Não recomendo a leitura à quem ainda não teve a oportunidade de assistir. Contém spoilers. Joss Whedon. É ele o herói maior dessa produção fantástica. Quase inexperiente no cinema, Whedon demonstrou coragem ao aceitar a liderança do maior projeto da Marvel até então e, acima de tudo, inteligência e competência para transformar o que começava a parecer atrapalhado em um evento verdadeiramente imperdível. Fissurado a HQs, especialmente às protagonizadas por super-heróis, o cineasta, inclusive, co-roteirizou um documentário intitulado Comic-Con Episode IV: A Fan's Hope (que estreia no presente ano – 2012 – no Brasil), sobre a maior convenção de quadrinhos do nosso planeta, realizada anualmente em San Diego, na Califórnia. Amante das fontes originais e conhecedor das séries e dos filmes já feitos e, também, do público alvo, seria o trabalho do Whedon fácil? Não. Abaixo, você pode assistir ao trailer oficial do Comic-Con Episode IV: A Fan's Hope: Trabalhar para fazer um blockbuster dar certo a ponto de ser admirado por público e crítica (quase que por unanimidade) não é e nunca será fácil. Christopher Nolan alcançou esse status quo com a sua trilogia Batman (que será finalizada pelo em breve Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge) apostando na caracterização sombria do Homem-Morcego e ressaltando aspectos psicológicos, emocionais e político-sociais que, fatalmente, remetiam, mesmo que ironicamente, à realidade humana. Whedon fez diferente. Atento aos personagens que tinha em mãos, o roteirista (antes de agir como diretor) parece ter percebido que intrincar uma trama densa, que bebesse de fontes psico-filosóficas e remetesse a qualquer realidade social muito profunda, poderia ser fatal e, com toda a pressão da Marvel e dos incontáveis fãs, sua carreira poderia entrar em colapso. Mas isso quer dizer que a história é fraca? Não. Diante de uma matéria-prima colossal (em fartura), mas sabendo que teria que promover o encontro de personagens apresentados em filmes anteriores (e inferiores), conseguir captar a essência de cada ser, portanto, era a escolha mais sensata. Mesmo assim, o cineasta foi além. Incutindo uma forte carga burlesca, sem cair no brega e sem medo de utilizar diversos clichês (todos necessários), como a aparição repentina de um herói (Capitão América – Chris Evans – no caso) para salvar um velho homem que se opõe a Loki (uma miríade de emoções interpretadas soberbamente por Tom Hiddlestone, de Meia-Noite em Paris), Whedon demonstrou que tem um time cômico arrebatador e, sem receio, usa-o. A competente direção, como um cartão de visitas, é demonstrada logo nas sequências iniciais, quando Nick Fury (Samuel L. Jackson, de Pulp Fiction - Tempo de Violência) desce de um helicóptero e, como se ele fosse permanecer acima do julgamento público (o que, de fato, acontece), a câmera lhe segue numa tomada baixa, engrandecendo o idealizador ficcional dos Vingadores e lhe carregando (aos olhos da não-consciência) a coragem de mantê-los juntos até o fim. Assim, Fury, mesmo utilizando uma doída mentira manipuladora, jamais será afligido por tal. Ainda brincando competentemente na cadeira da direção, Whedon se sai formidavelmente bem ao tratar, de forma ilustrada, a cognição intelectual dos personagens. Isso é muito bem pintado na cena em que Natasha Romanoff (a Viúva Negra – Scarlett Johansson, de Compramos um Zoológico) tenta convencer o Dr. Banner (o Hulk – Mark Ruffalo) a entrar para o time. Inicialmente convicto, Banner permanece ao lado direito da imagem (que é considerado de maior destaque no cinema), como nas imagens abaixo: Enquanto, aos poucos, é convencido por Romanoff, a imagem, lentamente, inverte e entrega o Dr. ao lado esquerdo. Confira o final desse processo no vídeo a seguir: Nessa mesma sequência, Ruffalo se revela a escolha mais acertada para viver o monstro verde. Demonstrando uma luta (e uma contenção) interna constante (revelada, em outro momento, como o segredo do controle da sua figura dramática), o ator se faz inquieto e permanentemente observador, o que transmite uma angústia verdadeira e um medo contido e atraente. Seguindo em sua diversão (que gera um entretenimento de qualidade bem acima da média) e, agora, transfigurando o entendimento concreto numa forma subjetiva auxiliar, o diretor, na primeira discussão envolvendo todos os super-heróis, inverte a câmera. De ponta cabeça, a imagem demonstra que, naquele momento, o mundo interno dos Vingadores e o mundo externo entram em colapso. Como se não bastasse, quase todo esse plano-sequência é realizado em uma única tomada, captando lentamente a individualidade de cada herói e remetendo, instantaneamente, aos diálogos silenciosos e solitários dos filmes de, entre outros, Paul Thomas Anderson (Boogie Nights – Prazer sem Limites). O inverso desse emaranhado de ideias heróicas surge no clímax da ação, quando, finalmente, unidos em prol de um só ideal, os heróis se entregam ao público como Os Vingadores, tendo a gag dessa união um clássico formato circular de igualdade, onde cada um tem conhecimento do seu papel. Tudo isso alicerçado por um trabalho de montagem perfeccionista que não deixa, junto à direção, o ritmo cair. São duas horas e vinte e dois minutos de cortes e retomadas que só elevam a vontade de descobrir o que vem a seguir (mesmo que seja algo que já sabido – como a volta do Homem de Ferro à atmosfera –, o que é espantoso). Em uma confabulação constante com o espectador, o filme não se intimida ao utilizar o humor para acompanhar as situações mais absurdas e fantasiosas e, às vezes, de auto-afronta. São arrebatadoras as insinuações, em tom de deboche, feitas por Tony Stark (Homem de Ferro – Downey Jr., de Sherlock Holmes) ao Steve Rogers (Capitão América – Chris Evans, de Scott Pilgrim Contra o Mundo) e ao Thor (Chris Hemsworth, de Star Trek), sendo a expressão máxima disso a inferência de que a capa do deus nórdico (deus somente para os humanos) tem como base uma cortina de Jord. Ainda sobre o caráter bufo dessa película, é necessário destacar a anomalia esmeralda. O Hulk que, na primeira vez que surge, protagoniza, junto à Natasha Romanoff, os minutos mais tensos e de agudo suspense, também é, sem qualquer dúvida, o maior alívio cômico (vencendo, inclusive, o impudico Tony Stark nessa batalha). E até mesmo o super soldado submisso ao seu país, Capitão América, faz graça ao invocar o grandão com a conhecida frase (quase uma ordem) meme “Hulk, smash!” (legendado como “Hulk, arrebenta!”)”, o que pode ser visto no vídeo abaixo: Sem cair no estigma de um filme de gênero e sem abrir mão da diversão, o maior mérito dessa obra fantástica (em fantasia e em qualidade) é conseguir, utilizando-se da coragem, inteligência e competência do seu criador, agradar a um público extremamente variado. Leigo, fã, profissional e aqueles que têm preferência por algum gênero são inseridos na história e se notam apreensivos, sorridentes, amedrontados, animados, entusiasmados e, por fim, satisfeitos (ou mais que isso). Apresentando, também, alguns easter-eggs (espalhados durante as mais de duas horas), como a participação de Powers Boothe (intérprete do senador corrupto Rourke em Sin City – A Cidade do Pecado) atuando como um Conselheiro de Segurança de atitudes duvidosas e Harry Dean Stanton (de Alien, o 8º Passageiro) discursando brevemente sobre alienígenas, demonstra-se uma metalinguagem que reverencia e respeita a sua arte, além de um grande zelo na criação. Há, também, diálogos sobre a existência divina. O soldado certinho e submisso às vontades do seu país se mostra convicto na existência de um (um único) deus, enquanto o cientista e anômalo reflete a sua ferina crença ao espancar Loki sem exitar, ao sair balbuciando “God frail.” (legendado como “Deus franzino.”)” e ao socar, abruptamente (num time sensacional), o presumível amigo e também deus (para os humanos, repito) Thor (ambas, as protagonizadas por Hulk, hilárias). Tecnicamente quase irrepreensível, contando com uma fotografia (do excepcional Seamus McGarvey, de Precisamos Falar sobre o Kevin) que, em cores, acrescenta carga emocional às curvas dramáticas (destaque para a leve sombra esverdeada sobre o rosto do Dr. Banner em momentos de crise) e com os efeitos visuais praticamente alcançando a perfeição, a única ressalva é conquistada pela trilha sonora (do talentosíssimo Alan Silvestri, que, há quase trinta anos, compôs a memorável trilha do clássico De Volta para o Futuro). Aqui, Silvestri desempenha um papel impressionante ao circular a história com uma harmonia cheia e densa, elevando as situações sem atrapalhar os momentos, mas peca, numa timidez intelectual que já dura anos (desde a bela música d’O Expresso Polar, de 2004 – e foram onze filmes entre esse e o em questão), ao não estabelecer um tema reconhecível para a equipe. Uma música inesquecível, certamente, faz falta a um filme memorável. Ciente do seu poder, Os Vingadores é, convictamente, o melhor filme da Marvel até o presente momento. Faceto e inteligente, viril e general, ainda consegue refletir o fã de HQs (mais precisamente da própria Marvel) no rosto daquele que se mostra um grande admirador interno daqueles “personagens”, o Agente Phil Coulson (Clark Gregg, de Os Pinguins do Papai). E, se a morte faz terminar a existência (ao menos de um colecionador terreno), a vida (em cards – agora, numa auto-exaltação) continua (apesar do sangue) firme. Avante, Vingadores! ps: Há uma cena em meio aos créditos finais. O personagem que surge é Thanos (que apareceu, primeiramente, numa HQ do Homem de Ferro), um titã que habita a lua homônima de Saturno. Bons e ruins filmes para nós! |
Membro fundador da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN), onde é integrante da diretoria, e membro do Cineclube Natal. Também é integrante da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).
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