Título original: Opening Night Direção: John Cassavetes O universo ruindo como se desconstruísse em planos incongruentes. Há somente dois mundos: o interior e o exterior. O primeiro desmoronando de dentro para fora e o segundo em sentido inverso. O interno, a essência de si, é a autoviolação inerte que só aguarda o encontro com o externo para explodir. Esse, de fora, é o oxigênio do mal, um elemento que se revela através da exploração induzida do próprio portador. Sim, portador. Os planos incongruentes são passíveis de contaminação. Se o interior adoece e é bombardeado pela ruidosa doença da incompreensão alheia, o exterior cede ao tempo. É efêmera a existência. E se torna ainda mais breve quando abraça a autoviolação. Myrtle Gordon (Gena Rowlands) é uma prima donna afetada por dois mundos em cada um dos seus dois diferentes universos. No mais pessoal, ela luta contra uma depressão gradual, cada vez mais profunda e, de mãos atadas a uma ansiedade crônica, percebe sua imagem no espelho ruir junto a ensaios e apresentações de uma peça teatral na qual ela precisaria desempenhar o papel de uma matrona. Enquanto ela luta contra si e reflexos mentais de uma juventude literalmente e metaforicamente atropelada, recebe o conforto de colegas de trabalho que constroem uma espécie de rede de contenção, com a intenção de protegê-la de suas inseguranças. É potencial, porém, que tanto afeto carrega uma porção considerável de egoísmo, já que a peça a ter sua grande estreia em Nova Iorque pode, de certa forma, manchar carreiras, especialmente do diretor Manny Victor (Ben Gazzara), da dramaturga Sarah Goode (Joan Blondell) e do produtor David Samuels (Paul Stewart). Dessa forma, Manny não se opõe a dizer que ama sua atriz ao telefone, tendo a parceria de sua esposa; Sarah a carrega a tiracolo, até a uma espiritualista um dia antes da estreia; e David, sabendo da carência afetiva daquela mulher que luta contra a própria idade, mima-a e beija-a com o intuito de acalmá-la. Tudo, claro, em prol do espetáculo. Mas os problemas de Myrtle são exponenciados justamente através do trabalho escrito por Sarah. Ao mesmo tempo que ela (Myrtle) diz não ser capaz de capturar a essência de Virginia (sua personagem na peça), sua mente grita, explicitando que o que ocorre é completamente o inverso: há uma identificação com aquela mulher de meia-idade que, por não ser jovem, não desperta mais a libido dos homens. O açoite do tempo, da idade, é o que a faz reconhecer-se e, enfim, iniciar uma assimilação de personagens como aquela, impelindo-a a uma fuga de si. Noite de Estreia, dessa forma, vai além dos dois universos de sua protagonista. Cassavetes não só consegue construir um legado sólido sobre a consumação da vida pelo tempo, um estudo de personagem extremamente rico e psicologicamente destruidor, ele retroalimenta a significação do que é viver sob o que se ama. Por mais que vejamos uma mulher doente em uma luta versus ela mesma, há uma digladiação que transcende o próprio filme. Na tentativa de compor uma personagem autêntica, Myrtle acaba por transformar, através do brilhante tratamento de Cassavetes, sua atuação em algo tão absolutamente orgânico que, por vezes, torna-se impossível definir se quem está em posse do corpo de Gena Rowlands é Virginia (a personagem da peça) ou a própria Myrtle. Isso pode, até, parecer óbvio, pois é claro que Virginia é somente Myrtle atuando. Mas a absoluta genialidade da ambiguidade está na consequência causada em quem assiste ao filme: quase tudo o que se vê de Myrtle é captado em planos fechados, muitos primeiríssimos planos (big close-ups), possibilitando a causa de uma sensação claustrofóbica. E a impotência sobre descobrir o que há realmente ao redor daquela mulher desconstrói-se no palco do teatro. Ao se enxergar o que está à volta de Virginia, há o vislumbre do artificial de um cenário. Mas Virginia, afinal, não é uma vida postiça, sintetizada por uma atuação. Ela é, em seu cerne, uma mulher carcomida pela vida que resiste a ser quem é. A dificuldade da percepção imposta por Cassavetes de ter certeza se é Virginia ou Myrtle que está de posse das falas – por mais que Virginia seja Myrtle – é completada pela própria incapacidade humana de ter certeza sobre o que se realmente é. A dita retroalimentação do significado de viver sob o que se ama reside naquela mulher, que mesmo explicitamente adorada pelos fãs, é solitária e carente. Se seu trabalho – artístico – é a válvula de escape de uma vida tão influenciada pelo tempo, sua dolorida existência há de encontrar sempre um significado. Existe algo de racionalmente inconsciente nessa relação, pois o amor dela passa a ser, finalmente, a insistência da razão quando os sentidos pedem clemência. Crítica originalmente publicada no dia 02 de março de 2017, na extinta página O CRÍTICO, da Versátil Home Video Título original: The Serpent's Egg Direção: Ingmar Bergman Por mais que seja considerado por Bergman como o seu pior filme, esse sentimento é influenciado por sua própria personalidade e, também, por brigas que teve nos bastidores com David Carradine. Sendo, em uma primeira visita, seu filme mais preso à própria narrativa, sem o tom contemplativo habitual, O Ovo da Serpente não é só uma reconstrução histórica de um nascente movimento fascista na Alemanha, é um apanhado assustador do quanto a sociedade pode ser vil e susceptível à perversão. Inicialmente expondo a dualidade intrínseca ao ser humano de forma clara, quando nos créditos iniciais a cena em preto e branco de vítimas do nazismo é entrecortada por uma música jazzística da mesma época e tipicamente americana, Bergman aos poucos inicia uma desconstrução dolorida dessa clareza metafórica. Se os opostos são revelados como inseparáveis da realidade e não mais do que casuais, como quando Abel Rosenberg (David Carradine) encontra uma ceia festiva e, poucos passos depois, seu irmão morto, é com muita habilidade que Bergman deixa sua história ser contaminada por uma maldade atemporal. Do vislumbre de mãe e filha esfarrapadas comendo a ossada de um cavalo ao testemunho de sujeitos uniformizados agredindo um homem desarmado, a construção de uma Alemanha pós-guerra em O Ovo da Serpente é, possivelmente, o atestado artístico mais lúcido e sutil do surgimento do nazismo. Se Hitler é raramente mencionado de forma direta, a proposta histórica mais contundente do filme é o de poder ser definido como uma mensagem de advertência. Mais uma vez de forma sutil, Bergman nomeia seu personagem mais significativo com uma coerência filmográfica reveladora: tendo os sobrenomes Vogler e Vergerus como mantras, o primeiro sendo os mágicos e sensíveis e o segundo nomeando personagens relacionados à maldade, o diretor não economiza esforços na construção da personalidade do médico Hans Vergerus (Heinz Bennent). Mencionado por Abel como uma criança que abriu um gato vivo em dois para ver o coração pulsar, o médico ressurge como adepto da onda fascista e fazendo experiências com seres humanos. É verdade que, por não haver curvas ou dimensões em sua personalidade, Hans pode ser notado como unidimensional e, até certo ponto, caricato. Mas seu sobrenome já o revela como expoente da perversidade dentro da filmografia de Bergman (vide os Vergerus de O Rosto, A Paixão de Ana, A Hora do Amor e Fanny e Alexander) e, por outro lado, as dimensões que o diretor quer alcançar fogem de qualquer personagem. O Ovo da Serpente é político e humanamente bergmaniano. Ele revela a construção do nazismo de Hitler solidificando de onde vem o maior motivo para o seu surgimento: o ser humano. É, portanto, atemporal. Indo além, percebe-se o quanto essa eclosão estava clara, algo que a sociedade de uma época parece não se importar, vendando-se. “É como o ovo de uma serpente: através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito.”, sentencia Hans Vergerus. Mesmo assim, às vezes erramos em aquecer alguns ovos ou fingimos que não podemos ver o interior destes. Crítica originalmente publicada no dia 14 de fevereiro de 2017, na extinta página O CRÍTICO, da Versátil Home Video
Título original: Rashômon Direção: Akira Kurosawa Nós somos falhos. Desejamos o que não nos pertence; não nos envergonhamos de muitas das nossas falhas – algumas nem julgamos como falhas; pregamos honestidade ao mesmo tempo em que pendemos a uma vida fraudulenta; dizemo-nos cristãos e julgamos (julgamos muito) sem querer que sejamos julgados – até matamos com as próprias mãos quem não se comporta em um determinado padrão (gênero, cor, credo…). Essa nossa fragilidade diante do ser verdadeiro estimula o surgimento de outros nós. A verdade é que temos propensão à glorificação de nossos feitos. Dificilmente abrimo-nos a ponto de revelar o que realmente somos. Em termos gerais, amenizamos ou extinguimos os nossos defeitos e embelezamos as nossas qualidades. Em sua autobiografia, que recebeu o título Relato Autobiográfico aqui no Brasil, Akira Kurosawa afirma que “seres humanos não são honestos a respeito de si próprios”. Rashomon é, dessa forma, um estudo intricado sobre a humanidade em seu contexto mais íntimo: O que é, afinal, ser um humano? Para responder uma pergunta tão complexa, Kurosawa cria cada plano e situação com uma quase infinitude de alegorias metafóricas. A começar pela cena que guia todo o filme, na qual uma chuva torrencial atinge as ruínas do portal de entrada da cidade de Rashomon. Como se não bastasse apenas a rima criada automaticamente por ser também o portão de entrada do filme, há a questão diluvial do que se passa. Em diversas mitologias (como na versão bíblica – do Velho Testamento), as águas do dilúvio são metáforas para uma possível limpeza, um purificação da humanidade. É, no caso, uma preparação para um renascimento. Em Rashomon, o que se vê, a princípio e além da chuva incessante, é um lenhador (que logo remete àquele capaz de construir uma arca), um sacerdote budista (reconhecido pela pureza) e, em seguida, a chegada de um homem comum (na falta de um termo melhor). Enquanto o lenhador (Takashi Shimura) e o sacerdote (Minoru Chiaki) murmuram que não conseguem entender o que haviam testemunhado, o curioso camponês (?) manifesta uma das condições humanas mais habituais, a curiosidade, logo conseguindo que ambos revelem as histórias que tiveram conhecimento. Já no “Palácio da Justiça”, o mais intrigante, trazendo para o contexto mitológico/bíblico, é a ausência da personificação do julgador formal. Cada história é contada como um relato a uma autoridade, mas esta permanece inacessível para o espectador. É interessante perceber, portanto, que acabamos sendo, nós mesmos, os julgadores. A construção de Kurosawa é tão engenhosa que, não raramente, acabamos não só julgando cada história contada, mas julgamos, ao mesmo tempo, as atitudes. Sejam as do conhecido bandido Tajômaru (Toshirô Mifune), com seus exageros e risadas febris; sejam aquelas da Masago (Machiko Kyô), a viúva do samurai, com sua fragilidade exacerbada; ou, ainda, as desempenhadas pela médium (Noriko Honma), que incorpora o falecido Takehiro Kanazawa (Masayuki Mori); todos são passíveis de nossos julgamentos. Eu, inclusive, acabei de ajuizar alguns valores nesse parágrafo. Ao mesmo tempo que a nossa capacidade de julgamento não nos permite ter absoluta certeza sobre qualquer uma das histórias, Kurosawa incorpora um elemento até então nunca utilizado no cinema e que é aproveitado para causar tanta dubiedade quanto: a cinefotografia direta do sol, estrela que viria a se mostrar fundamental à coerência do filme pouco antes dos créditos finais. Com tal característica, entender o uso da luz em Rashomon é fundamental para que embarquemos em toda a proposta humana do filme. Percebe-se, nesse caso, que Kurosawa liga a luz ao bem, ao que é racionalmente sensato, e a escuridão ao mal, ao que é insensato ou impulsivo. Um exemplo claro desse emprego da luz está no fato de que a esposa do samurai vai se entregando a Tajômaru à medida em que o sol vai sendo coberto por uma nuvem. Além de conseguir o feito junto ao diretor de fotografia (Kazuo Miyagawa), a utilização da luz natural em Rashomon era uma das prioridades do mestre japonês que, ao perceber a dificuldade de iluminar na densa locação da floresta, decidiu, com Miygawa, utilizar espelhos para refletir a luz do sol no rosto do elenco. Ainda, a história que pode se ter como a verdadeira, a que é tardiamente contada pelo lenhador, mostra-se igualmente mentirosa. É onde o gosto de Kurosawa pelo cinema-mudo, pela fisicalidade de Chaplin, transborda. Um bandido como Tajômaru e um samurai jamais seriam tão desajeitados em um duelo. O longo e burlesco combate entre esses personagens reflete a grandeza da mentira do lenhador. Mesmo assim, com a estranheza do relato, é possível que se acredite na história daquele homem. Isso porque Kurosawa sabia que, apesar de sermos falhos, somos susceptíveis à bondade; que apesar de nos sentirmos juízes atentos, somos réus de um mundo que nos corrompe, transformando-nos em nossas piores versões. Com o fim da chuva no portal de Rashomon, surge o sol para sugerir a bondade que costumamos perder. Enquanto, antes, o camponês decidira encarar as águas, permanecendo adepto de sua quase desumanidade, o sacerdote e o lenhador presenciam o renascimento. É quando até o sacerdote, que permanecia sem fazer ajuizamentos de outrem, mostra-se socialmente humano ao exprimir seu preconceito para com o lenhador. Este que, por sua vez, exprime sua bondade ao sugerir ficar com o bebê. “Se os homens não puderem confiar uns nos outros, esta terra poderia perfeitamente ser o inferno.”, diz o sacerdote, desculpando-se. Afetados por aquele ser que é metáfora de inocência e inculpabilidade, aqueles homens partem para um reinício de vida. Banhada pela luz do nosso astro-rei e fora daquela arca em ruínas, a vida seguirá transformada para aqueles dois. Rashomon finda sem certificar qual história é a verdadeira, fazendo com que a única realmente relevante ultrapasse a si como filme, convertendo-se na que nós construímos com nossas próprias vidas. Crítica originalmente publicada no dia 23 de março de 2017, na extinta página O CRÍTICO, da Versátil Home Video.
Título original: Moulin Rouge Direção: John Huston É quase certo que o título remete instantaneamente ao dinâmico filme de 2001 dirigido por Baz Luhrmann, Moulin Rouge: Amor em Vermelho. De fato, são duas adaptações distintas da mesma obra escrita por Pierre La Mure e, estranhamente, os créditos para La Mure estão omissos na obra de Luhrmann. A verdade é que a comparação para por aí, porque, enquanto o Amor em Vermelho é cinematograficamente efusivo, o filme em questão, dirigido por John Huston, é contido, revelando a própria alma de Henri de Toulouse-Lautrec (José Ferrer). É exatamente devido a esse autocontrole que Moulin Rouge acaba por ser um filme tão significativo. Ao mesmo tempo em que, do início ao fim, vê-se muito da vida de um introspectivo Toulouse-Lautrec, a direção de arte constrói um ambiente extremamente radiante, tal qual as telas do pintor. Muito do que se conta é orquestrado pelo traço rápido e característico daquele que viria a ser considerado um dos mais importantes pós-impressionistas. Há, ainda, espaço para toda uma belíssima composição visual de seus desenhos e pinturas em um ritmo hipnotizante, montados de acordo com a trilha sonora. Por outro lado, esse contraste é interrompido quando o artista está a sós ou sempre que ele se encontra com a comunicativa e instável Marie Charlet (Colette Marchand). Tal trabalho visual estabelece uma preparação para o virtual futuro próximo, seja para o espectador ou para o personagem apaixonado. É, além disso, histórico que personagens com alguma deficiência física (no caso de Toulouse-Lautrec, as pernas pararam de crescer após um acidente quando era criança) sejam concebidos com personalidades fortes ou tenham seus atributos não-físicos bem desenvolvidos. Dessa forma, tem-se exemplos de algumas figuras emblemáticas do cinema e da televisão. Do David (Carne Trêmula) ao Professor Xavier (X-Men); do Christy Brown (Meu Pé Esquerdo) ao Tyrion (Game of Thrones); são personas fortes, que fogem do fraco e quase preconceituoso estigma de serem dignas de pena para alcançarem uma vida que, antes de qualquer condição, tem o poder de ser admirada. Myriamme (Suzanne Flon) traduz esse sentimento para com Toulouse-Lautrec. Mas ele, fechado no labirinto imposto por Marie Charlet, impõe, a si mesmo, a invisibilidade. Dormente em seus autopredicados, o artista não mais percebe o mundo à sua volta além daquilo que pode virar arte. Cada vez mais preso em si, não entende a chave cedida por Myriamme e, quando já é tarde, consome-se a partir da sua própria e errada certeza. É, portanto, determinante assimilar a força da cena em que, pronto a se despir da vida, o mesmo homem que não pintava há dias descobre o maior significado de sua existência. Voltando ao cartaz do cabaré que dá nome ao filme, o Moulin Rouge, Toulouse-Lautrec não só revive como artista, mas se entrega à essência do que sempre foi. E a última cena é, desse modo, o resumo mais do que perfeito de um nobre que jamais deixou de se misturar naturalmente ao povo. Tendo a sua extrema-unção à beira da cama e com sua rica família ao seu dispor, ele apenas abre os olhos para, em alucinação, observar a quem mais importou em sua vida. Justamente aqueles que sempre foram retratados em suas obras, traduzindo, com a maior das forças, a vida eterna que um verdadeiro artista cria: sempre uma cópia da sua alma. Crítica originalmente publicada no dia 29 de maio de 2017, na extinta página O CRÍTICO, da Versátil Home Video. Título original: Portrait of Jennie Direção: William Diertele O verdadeiro artista dificilmente vive na mesma época do seu corpo. Seu lugar é tão dentro de si quanto fora de qualquer convenção que exprima certezas. Enquanto seu interior dita o que lhe move mesmo que seja nada explícito muitas vezes, o exterior é o contraponto, é aquilo que molda o significado da sua arte. Se a arte pouco condiz com o que já é externo, nasce a ruptura, o processo de futurização artística, quando a criação em questão não faz parte do agora, mas é um elemento do amanhã. O Retrato de Jennie é, dessa forma, um conceito: Se Eben Adams (Joseph Cotten) não consegue ter um sucesso genuíno com suas pinturas comuns da natureza e de paisagens nova-iorquinas é porque ele ainda não descobriu como transportar a si para, de fato, eternizar-se; seus quadros são objetos comuns, um arremedo de tintas que tem pouco valor a mais do que o material gasto. Por mais que o velho Matthews (Cecil Kellaway) perceba o valor mínimo da arte de Eben, sua sócia, a emblemática solteirona Miss Spinney (Ethel Barrymore), conhece o atalho mais sólido e, ao mesmo tempo, figurativo para que aquele homem possa transportar sua alma mais autêntica para as telas. Reconhecendo a banalidade das amostras, ela adquire, mesmo assim, a tela de um vaso com flores acima do valor real do trabalho. São, de tal modo, as primeiras flores recebidas em vida pela Miss Spinney que, já de idade avançada, parece julgar ser tarde, o que só é aumentado pela metáfora de uma natureza morta. Mas reconhecimento move o artista. E é a partir dessa aquisição e dos comentários mais do que pertinentes da sábia senhora que Eben encontra a sua forma de explicitar o que lhe move. Jennie é a materialização da alma de um artista. Sua biologia fantasiosa traduz o crescimento interno de Eben. Por outro lado, O Retrato de Jennie configura uma crítica à toda arte contemporânea desafeita de lucidez e paixão. O dito processo de futurização artística não pode ser entendido como um processo de realização do novo a qualquer custo. Na desvalorização do passado, talvez resida o processo incompleto da formação artística. Do mesmo modo, segrega-se valores intrínsecos ao criador para inserir ou extrair valores do observador: a arte deixa de ser a alma do artista para ser uma composição mista dos olhares, mentes e reações de quem a presencia. A atemporalidade da arte passa a ser a atemporalidade da construção mental e social do homem. Eben encontra a ruptura de sua arte em uma representação do passado que, gradualmente, torna-se seu presente mais apaixonante. Miss Spinney conduz a transformação de um homem comum em um grande artista. Se ela é ligada à Jennie pela echarpe, finalmente têm-se a completude da constituição de Eben: o reconhecimento, a inspiração e a compreensão de que tudo está, de fato, no seu íntimo. Não por acaso, a finalização do filme é dos minutos mais belos da história do cinema: o preto e branco torna-se verde para que Jennie seja perdida por Eben e, então, organicamente, surge o vermelho – tonalidade oposta – para que Eben constate que não perdeu a amada, visto que ela estava inteiramente dentro dele. “Eu não a perdi. Agora está tudo bem.”, ele comenta. Sabe-se, logo, através de um letreiro revelador, que, a partir dessa situação, aquele artista vive uma carreira altamente inspirada. É quando corta para o retrato de Jennie em exposição, a cores, em lindo Technicolor, e percebe-se que, além da metalinguística evolução do cinema (David O. Selznick, produtor do filme, produzira o primeiro filme a cores, …E o Vento Levou, quase 10 anos antes), o futuro está intrinsecamente ligado ao passado. E é o respeito a essa força predecessora que acaba por criar um elemento do amanhã. Crítica originalmente publicada no dia 13 de junho de 2017, na extinta página O CRÍTICO, da Versátil Home Video.
Título original: Trollflöjten Direção: Ingmar Bergman “Foi uma representação pesada, longa. O pano subia para se mostrar uma cena breve, voltava a baixar e, atrás do pano, havia uma grande azáfama: martelavam, construíam…”, relatou Bergman em seu livro Imagens, praticamente um autorretrato em palavras de um homem inibido, mas que se encontra ao falar da sua arte. O trecho citado, diga-se, são palavras do diretor sobre o seu primeiro contato com a ópera A Flauta Mágica, quando tinha 12 anos de idade. Assim era Mozart em seu íntimo: lúcido, pensativo e, de certa forma, escravo das suas criações; extravasava ao compor e, por mais que tentasse externar não o que era, mas o que desejava para os outros, deixou assinaturas musicais que lhe revelavam por inteiro – como o fazem os movimentos lentos de suas sonatas para piano. Mas a sua facilidade de metamorfosear a própria alma era doentia. Sua dor contínua por subsistir foi exposta por completo somente a partir do seu leito de morte, ao compor inacabadamente o Requiem em ré menor (K. 626), missa fúnebre que seria finalizada por seu pupilo Franz Xaver Süßmayr. O filme em questão, dessa forma, é, provavelmente, a união entre ópera e cinema mais consciente já realizada. E isso é alcançado porque Bergman compreendia a música de Mozart como poucos. Não só compreendia como era fascinado pelo compositor austríaco e, especialmente, pel’A Flauta Mágica, o que se comprova pela utilização fantástica de parte da ópera no filme A Hora do Lobo (antecedente em sete anos), através de um teatrinho de marionetes. “Por um breve instante o sofrimento é aliviado. É quando representam A Flauta Mágica. A música proporciona-lhes alguns momentos de paz.”, corrobora Bergman com o conhecimento de que a ópera havia sido escrita, quase dois séculos antes, não para os abastados, mas para atingir o povo, proporcionar felicidade a quem vivia em aflição. E assim ele inicia o seu filme. Primeiramente expondo uma garotinha assistindo à ópera em um teatro barroco (remetendo às construções da época clássica mozartiana), logo ele revela diversos rostos, numa miríade de cores e classes que foge de qualquer elitismo ao qual as óperas são ligadas. É brilhante essa exposição, igualmente, por mostrar que a escolha não é por adaptar extraindo da ópera, mas adaptar inserindo a ópera em si na linguagem do cinema, linguagem que Bergman dominou como pouquíssimos. Isso, portanto, acontece já nesse início, quando é empregado apenas o primeiro plano, elemento que, por ser ligado somente ao cinema, rompe com o teatro. Ao mesmo tempo, o que se está a filmar são rostos de uma plateia que está no teatro, voltando a ligar os pontos e transformando tudo em uma ideológica forma de expressão híbrida absolutamente genial. Bergman, ainda, recria os intervalos entre os atos, cedendo vozes humanas ao elenco, fora da onírica criação de 1791. Aliás, é a partir do primeiro intervalo que o hibridismo sugerido inicialmente recebe mais força. Ao voltar-se para as coxias, não mais filmando da visão do público, o diretor sueco não somente promove mais uma fuga do lugar-comum das filmagens teatrais, mas começa a ceder ares ainda mais cinematográficos à narrativa. No fundo, A Flauta Mágica é uma implosão bergmaniana. A menininha que tantas vezes é centralizada nos ditos primeiros planos inspira um ar de autobiografia, de um passado que poderia ter existido se, à época, a encenação tivesse sido daquela forma. Afinal, Mozart era leve. Extrair tristeza de suas obras não é, de forma alguma, o papel de uma criança de 12 anos de idade. Em sua agenda, que ele tinha como uma espécie de diário, Bergman escreveu: “As filmagens de A Flauta Mágica estão concluídas. Foi um período extraordinário de minha vida. A proximidade e a satisfação diária da música! De que dedicação e ternura fui alvo!”. Com extremo respeito à música de Mozart, há a mistura mais do que homogênea entre os temas mais íntimos do diretor: a solidão e o medo (ou a fuga) da morte – temas que também circundavam a mente do compositor. Apesar da língua sueca em substituição ao alemão original do libretista Emanuel Schikaneder, A Flauta Mágica é, por assim dizer, o único filme realizado por Mozart. Postumamente, claro. A ausência do nome de Bergman nos créditos da versão original parece sugerir essa consciência sobre um audiovisual mozartiano. Mas, mesmo que o filme estivesse desconhecido e fosse encontrado descreditado, não seria difícil constatar a autoria. A genialidade e a assinatura do diretor andam de mãos dadas com a dimensão de Mozart. Crítica originalmente publicada no dia 21 de junho de 2017, na extinta página O CRÍTICO, da Versátil Home Video.
Título original: Pickpocket Direção: Robert Bresson As emoções dissipadas dos filmes de Bresson podem incomodar o espectador acostumado aos arrebatamentos das atuações mais visadas. A superfície bressoniana, dessa forma, é revelada como uma imobilidade excêntrica, onde o fluxo real está justamente nos não-fazeres. A direção sobrepõe a tudo de uma forma absolutamente intencionada, fazendo com que Bresson seja, provavelmente, o maior autor do movimento minimalista. Para entender um pouco sobre essa natureza arredia, vale um retorno breve à sua obra anterior, Um Condenado à Morte Escapou, e seu título original, que é complementado com o alternativo O Vento Sopra Onde Quer. No filme, por sinal, o protagonista lê alguns versículos bíblicos e, entre eles, discorre: “Não te maravilhes de que eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai.” (João 3:7-8). Há um sentido tão pessoal e intrínseco que a cena valoriza as palavras ditas pelo ator – modelo, para Bresson – com extrema serenidade, provendo-lhes uma negação metafísica da aleatoriedade dos acontecimentos, assim como o querer de Fontaine (o protagonista) é a negação psicológica para o acaso. Já para Bresson, a negação maior era às interpretações teatrais ou minimamente esquematizadas. Assim, ele conduzia com rigor o que queria contar, transformando a rebentação fílmica, o ato de surpreender-se, em uma postura reflexiva. Nessa premissa, Bresson construiu o que é uma das sequências de planos mais bem estruturadas da história do cinema: numa estação de trem, a dança de mãos, que ora entram em bolsos e saem com carteiras ou dinheiro, ora furtam relógios, não é mais do que a concretização do fascínio que o diretor tinha pela (volta-se) aleatoriedade que nos permitimos. Isso porque ele era um aficionado pela gesticulação casual das mãos e, estas, por sua vez, precisavam ter os seus mais profundos sentimentos, sendo reveladas em planos detalhes muito cuidadosos. Aliás, não só em planos detalhes: percebe-se que, especialmente na sequência comentada, todo plano é iniciado por alguma mão. Não interessa, assim, se é um plano médio ou que seja necessária a revelação do rosto de Michel (Martin LaSalle), o movimento de uma mão dá início a tudo após cada corte. É, sem dúvida, interessante rever O Batedor de Carteiras quase seis décadas após o seu lançamento. O mundo é outro. Vive-se, hoje, em uma era quase que completamente diferente. A interiorização que Bresson possibilita, a partir de Crime e Castigo, de Dostoiévski (obra livremente inspiradora), junto a Michel é de uma complexidade imensa e atual. Ao discorrer, com uma narração em off que complementa as imagens – jamais soando redundante ou didática – Bresson permite que o espectador se identifique com seu protagonista. Mais do que isso: promove uma discussão sobre questões atemporais. O crime e o encarceramento é, de fato, uma questão social relacionada diretamente às desigualdades. Michel, portanto, não é somente um ladrão comum, um batedor de carteiras que pode ser julgado de forma rasa (algum pode?). Ele o faz por não ter razões para viver. Michel é um homem que entra para o mundo do crime para se sentir vivo, algo que, socialmente, ele desconhece. E seu aprisionamento é o que o faz repensar a vida. Coincidentemente (acaso ou o vento sopra onde quer?), não porque o cárcere o modificou, mas porque, por amor à Jeanne (Marika Green), liberta-se de sua amargura anterior. Um novo toque para as mãos. Um sentido para a vida afinal, visto que o amor, mais do que qualquer outra ligação, é uma relação social. Crítica originalmente publicada no dia 3 de julho de 2017, na extinta página O CRÍTICO, da Versátil Home Video.
Título original: Por Onde Escapam as Palavras Direção: Luís Albuquerque Roteiro: Luís Albuquerque Sem generalizar – que doa em quem precisa doer –, a classe crítica atual está preocupada somente em destruir, esquece-se que há sonhos por trás de uma produção. Nesse ponto, não importa se é um trabalho de grande dimensão financeira como o Alien³ ou um filme exponencialmente menos endinheirado como o em questão. A verdade é que, por mais que um estúdio produza algo com a intenção do lucro, há gente por trás. Uma vez que a sequência sci-fi de 1992 era produzida por uma Fox que asfixiava esse que viria a ser o primeiro trabalho de David Fincher em um longa-metragem, é possível que o diretor não perdurasse por causa de qualquer crítica irresponsável que não estivesse disposta a perceber a potência que se escapava entre as amarras da visão capitalista da produtora. Por outro lado, não há de se fazer uma comparação qualitativa entre Fincher e Luís Albuquerque. A comparação é humanística. E é social também. O trabalho cinematográfico de Luís move a cultura de uma cidade, fomenta uma produção artística não mais esquecida e dá vida a sonhos. Se Por Onde Escapam as Palavras não traduz a qualidade de um cinema estudado e tecnicamente consciente, revela o coração de um diretor que, além de dar vida a personagens interpretados por um elenco que dificilmente estaria envolvido com tal arte, sem dúvida, não se deixará abalar por quaisquer palavras ofensivas gratuitas e nada profissionais de colegas (meus) da crítica. E é em fazer saltar essa dimensão praticamente invisível em filmes mais pomposos que reside a maior qualidade de Por Onde Escapam as Palavras. Nesse sentido, o filme torna-se tão pessoal quanto necessário. É uma mensagem ingênua (no melhor sentido da palavra) e carinhosa direcionada àqueles que sobreviveram e sobrevivem à perda de um ente querido. Não se trata de uma abordagem de pés descalços em uma realidade possível. É uma simbólica carta de esperança diante de uma massiva falta de compaixão que parece tomar um presente nosso cada vez mais distópico. Mas há de se comentar, pontualmente, que falta técnica ao trabalho. Após a belíssima introdução regada por imagens captadas por drone e por uma trilha sonora espetacular executada lindamente em um violão harmônico-melódico-percussivo, uma sucessão de planos sem coerência metodológica conduz a história. A impressão causada é a de que, além do roteiro propriamente dito, não existiu roteiro técnico: as câmeras foram posicionadas sem analisar qual sensação causar no espectador. A história está ali, decorrendo, mas os planos e contraplanos aleatórios trabalham para pôr em xeque o texto e, não, para auxiliar na contação. O som, por sua vez, está livre de qualquer ruído, o que atesta a qualidade do som direto da produção, mas sucumbe a uma edição que deixa frequências graves e médias contaminarem o todo. Especialmente em ambientes internos, as frequências abaixo de 150 Hz e todas aquelas em torno de 300 Hz parecem dominar o que é falado, ocasionando uma audição pouco precisa. Enquanto isso, um erro de continuidade pode incomodar uma das cenas mais bonitas: em um diálogo entre a jovem pianista e seu professor, a partitura na estante do piano (que claramente é o roteiro) desaparece e volta a surgir entre os cortes da montagem que procura ser ágil, mas acaba por naufragar na rasa profundidade da linguagem cinematográfica. Em contrapartida, a atuação de Bruno Manique (que, diga-se, não é ator por ofício) é forte e muito competente, liderando o elenco a exprimir o melhor de si. Há, visivelmente, dedo de Luís nessa construção, de onde extrai-se, ainda, um monólogo muito bonito de João Damasceno aos minutos finais. Aliás, o pouco tempo de João em cena, a maior parte imóvel, é suficiente para demonstrar uma composição minimalista e extremamente expressiva. É no resultado extraído de João que está o segredo para a evolução da equipe, especialmente do seu diretor. Conseguir unir toda força e coração já existentes no seu trabalho a uma possível mestria no procedimento mais racional é o potencialmente crível Triple-Double de Luís Albuquerque no cinema. Um ex-jogador de basquete que pode, sim, ser o que quiser à frente da complexa sétima arte. A partir de um estudo individual da linguagem própria do cinema, o Lita poderá fazer com que o seu melhor futuro se transforme, gradualmente, em passado. Título original: Necktie Youth Direção: Sibs Shongwe-La Mer Roteiro: Sibs Shongwe-La Mer Data de lançamento: 09.03.2017 (Brasil) / 08.02.2015 (Berlinale) Distribuição: Fênix Filmes Cotação: ★★★★★ Não há como dissociar a arte da política. Se a arte não reflete diretamente o contexto histórico de sua época, contém uma carga de organização pessoal que transcende o ser, integrando-se à política de qualquer forma. Mas há, claro, como deixar essa relação mais aparente. Uma das formas é viver na África do Sul e escolher dar voz aos negros. Naturalmente, a imagem de Nelson Mandela surge como um estandarte pós-Apartheid, o rosto daquele que lutou por direitos iguais e que, como líder, alcançou resultados historicamente e humanamente contundentes. Falar de preconceito racial, aliás, parece tão urgente aqui quanto discutir a juventude e o teor de superficialidade que ela cede à vida. Isso fica claro na sequência de abertura de Eles Só Usam Black Tie, quando a jovem Emily (Kelly Bates) filma o próprio suicídio em transmissão online ao vivo. Não é a morte, portanto, que causa impacto. Ela é a crista da onda de banalização da existência. Assim sendo, a construção proposta pelo diretor (e roteirista) Sibs Shongwe-La Mer é semelhante à formação de um tsunami: algo ocasiona um terremoto submarino que, por sua vez, forma uma onda submersa. Ela (a onda) vem crescendo e ganhando força até mostrar-se, quando já parece ser tarde demais. Jabz (Bonko Cosmo Khoza) e September (o próprio diretor) são a concretização humana dessa onda. Percorrendo diversos guetos de Joanesburgo, eles são o fio condutor de cada situação do filme. A questão é a força dessa conexão. Ciente da frivolidade à qual estão submetidos seus personagens, Shongwe-La Mer não se importa em criar heróis. Seus protagonistas são frutos de uma sociedade simplista, regida por vozes de gente empanturrada. Isso é explorado sem a utilização de qualquer senso comum e, mesmo que September mostre-se como o elo mais forte da irmandade, ele é decerto humano e, falho como tal, fomenta discretamente o tráfico de drogas. Sobretudo, é crucial a opção de manter o desdobramento da história entre a classe média sul-africana, desmontando a premissa de que jovens de periferias estão mais à mercê do que é banal. A verdade é que Emily é só o estopim de uma juventude perdida que, sem uma política que lhe dê base, um líder como Mandela por exemplo, e sem o interesse em qualquer tipo de ligação que não seja com a proximidade do próprio fim, assiste sua autodestruição através de um pessimismo inconsciente. Nesse ponto, o título original, Necktie Youth (algo como “juventude engravatada" em tradução livre), revela poeticamente que aqueles jovens que um dia foram impulsionados por um líder rebelde alcançaram uma perigosa liberdade: a de poder ir para qualquer lugar sem jamais saber para onde. A gravata no pescoço, infelizmente, é uma alusão clara ao enforcamento que, lentamente, a classe média submete-se na ilusão de uma estabilidade adquirida. Assim, o desfecho é dolorosamente implacável porque a inércia custa caro. Shongwe-La Mer, de apenas 25 anos de idade (23 quando finalizou o filme), não criou algo que retrata somente o seu país. Eles Só Usam Black Tie é um filme que fala para um mundo doente que não se preenche vazios existenciais com auto-anulação. É um filme que precisa alcançar o mundo. Título original: Hell or High Water Data de lançamento: 02.02.2017 (Brasil) / 16.05.2016 (Festival de Cannes) Direção: David Mackenzie Roteiro: Taylor Sheridan Quando um filme constrói uma relação duradoura com o espectador, sente-se que há algo de excepcional ali, que cada cena vai além do que é visto concretamente e há um contexto que ultrapassa o cinema. É essa transposição alegórica que inquieta, desconforta e planta uma semente capaz de germinar dias mais tarde, quando tudo faz sentido enfim. Isso porque, vendo-se de forma linear e subtraindo qualquer relação com o mundo exterior, A Qualquer Custo é raso, frágil e parece não se justificar. Mas ali habitam tantas rimas com o mundo real e tantas metáforas que a dissolução até surge durante a primeira visita, mas tende a ser pouco crível. A força é tanta que ofusca o óbvio. Quando o conteúdo clareia, já fermentado na memória, brota a segunda fase do filme, a fase da memória. E é justamente a memória que mais afeta seus protagonistas, algo que é didaticamente revelado ao final, quando Toby (Chris Pine) discorre sobre a pobreza que sempre caminhou ao lado de sua família frente ao homem que matou seu irmão. Assim, os olhares dos irmãos Toby e Tanner Howard (Ben Foster) são sugeridos como se estivessem sempre perdidos ao longe, como se olhassem para o horizonte e pouco alcançassem. Se instantaneamente essa perdição pode construir alguma apatia, a crueza dos fatos é reveladora: a busca sem resultado por oportunidades, por prosperidade, transformou os irmãos em criminosos. O ethos nacional, o Sonho Americano, é construído junto à exploração da dupla, em uma curva crescente que culmina com a ruína de Tanner, ilhado em meio ao caos, e a inconfortável estabilidade alcançada por Toby. O incômodo deste é ilustrado pela presença do Texas Ranger Marcus Hamilton (Jeff Bridges), que indica que, mesmo alcançado o lugar ao sol, a sombra será escassa. A relação de luz e sombra por sua vez é esteticamente lindíssima. Enquanto a um momento o que se vê são as silhuetas dos Howards recebendo a luz do sol por trás de uma cerca de arame farpado, ao final é a terra banhada por essa luz que a câmera de David Mackenzie revela. Mesmo assim, Toby, agora dono de terras, está ciente que seu passado está abaixo da terra e que ele defenderá, com violência mesmo (o que sugere seu rifle empunhado), a continuidade do seu desconfortável Sonho Americano. Há espaço, ainda, para uma reflexão sensata e pessimista sobre a caminhada que estamos fazendo enquanto sociedade: se no contexto texano do filme, Alberto, que é meio índio e meio mexicano, é morto sem piedade por um criminoso (claramente subvertido pelas condições de vida que teve) e um caubói em fim de carreira insiste em velhas piadas racistas, remete-se à relação de várias camadas sociais. É como se um governante xenófobo, racista e problemático assumisse a maior potência do mundo, não se importasse com o crescimento das classes mais baixas e, diariamente, matasse a cultura e expulsasse quem não tivesse sangue azul ou cidadania do seu país. Pior: fechasse as possibilidades de inclusão. Os caubóis permanecem vivos e o novo morre. Um filme não acaba com o início dos créditos finais. Também não é o fim quando os créditos cessam. A Qualquer Custo é a prova de que um filme pode encontrar sua conclusão muito tempo depois de ser assistido e, permanecendo inconclusivo, pode ecoar por um tempo indeterminado. Se o eco findar, chega-se à terceira e última fase do filme. |
Membro fundador da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN), onde é integrante da diretoria, e membro do Cineclube Natal. Também é integrante da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).
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